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Resenha: (Como foi) Hiromi: The Trio Project no SESC Pompeia

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Hiromi Uehara veio a São Paulo pela primeira vez para apresentações de seu novo projeto nos dias 16 e 17 de agosto. A iniciativa é do SESC, com o festival Jazz na Fábrica, que busca um panorama do novo jazz internacional e nacional. Segundo Thiago Freire, do SESC, “A edição deste ano procura olhar para as extremidades do jazz e para esta capacidade de se reinventar, que parece inesgotável; de se alimentar de elementos muito variados como a riqueza musical de culturas muito distintas, a música pop em toda a sua diversidade (a soul music, o rock, o blues, o hip hop, o samba etc), a música de concerto, as vanguardas, as misturas; conservando, no entanto, uma forte identidade e, ao mesmo tempo, um estranhamento constante. Algo difícil de definir, mas possível de exemplificar em duas frases: ‘Ah, isto é jazz!’ e ‘Nossa, isto é jazz?’”

Hiromi apresentou-se com Anthony Jackson no baixo e Simon Phillips na bateria. Anthony traz consigo seu colossal e aparentemente pesado baixo elétrico de 6 cordas, sua própria invenção criada na década de 70 como o “baixo natural”de mais amplo alcance e contra o baixo convencional de quatro cordas. Sentado em uma cadeira no palco com o instrumento – de fato pesado, a julgar pela forma como agora repousa nos braços de seu dono – mostra a que veio: segurar a banda, improvisando constantemente, voando ele mesmo em todo seu estoque infinito de notas, enquanto toca ali a base sobre a qual a banda voa. É um baixista muito versátil, alternando entre palheta e dedo, notas ou acordes, com absoluta desenvoltura e timing.

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Simon Phillips é baterista de sessão consagrado, tendo tocado com Jeff Beck, The Who, Judas Priest e Mike Oldfield. Para a noite de 17 de agosto Phillips trouxe seu kit de bateria  carregado nos “pratos” – um termo genérico porque não tenho nenhum conhecimento específico de bateria. É surpreendente como o baterista consegue dar a levada sobre a qual o vôo vai ser alçado ao mesmo tempo em que intensifica a potência do trio. Em momentos de ápice, Phillips chega até a usar pedal duplo e a segurar a batida nos pratos mais estridentes e ecoantes.

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Hiromi toca apaixonada e incendiariamente. Suas composições fundem toda a tradição recente do jazz fusion de Hancock, Chick Corea e Zappa com a herança do bebop à música erudita em uma roupagem especialmente contemporânea, pessoal e sem precedentes. Os temas e motivos das músicas que apresenta são ora furiosos, ora emocionais, mas sempre virtuosos e afiados. A partir da apresentação dos temas a banda transforma-se em um foguete e as improvisações ganham vida. E que vida! Além de compositora, Hiromi improvisa sempre de forma drástica, e em seus dedos toda composição se transforma numa viagem efervescente até retornar ao tema de forma imprevisível e maestra. Energia não lhe falta, e como numa performance ao vivo o visual de fato importa, Hiromi empolga levantando-se ora parcial e ora completamente de seu banco e gritando de empolgação enquanto seus dedos criam fumaça nas teclas.

A pianista estava bastante à vontade.Em sessões de baixo e bateria apenas, levantou-se do piano, foi para um cantinho escuro no palco e lá ficou dançando o groove de sua sensacional banda. Antes de iniciar a apresentação da terceira música, pegou um bilhete de papel que trazia em seu bolso e, lendo-o, agradeceu com “obrigada” à salva de palmas, que gerou ainda mais palmas, e terminou, ainda em português, dizendo que era sua primeira vez em São Paulo e que estava divulgando sons do seu mais último álbum, Alive, com este novo trio com o qual vem trabalhando e lançando álbuns desde 2011.E digo “novo trio” porque, além de suas colaborações com Chick Corea e o Trio de Stanley Clark, Hiromi também é famosa por ter organizada outro trio, aquele de Martin Valihora na bateria e Tony Grey no baixo. Diferentemente de Tony Grey, que se expressa na tradição de John Patitucci, Anthony Jackson é um baixista não muito chegado às distorções de som. Usou distorção pesada em um único momento do show, solando em acordes.

Como não poderia faltar e, talvez na medida certa, levando em conta essa nova fase da pianista, Hiromi também usou seu famoso moog vermelho – o qual tocava mais extensivamente em seu quarteto Hiromi’s Sonic Bloom – que desde o começo do espetáculo repousava atraentemente em cima do piano. Foi só na quarta música que Hiromi estreou pela noite seu dispositivo eletrônico de som sintético, ácido e distorcido, que logo tomou conta do teatro esfumaçado e escuro.

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Hiromi compreensivelmente restringiu o repertório às músicas que compôs com este trio, e privilegiou especialmente aquelas do álbum lançado em 2014. A subida ao palco foi com alguns minutos de atraso, mas por isso culpem o próprio público, que mesmo após os 3 e estridentes avisos sonoros insistiam em ficar em pé na plateia ou do lado de fora. O show durou cerca de 1h40min e após resolutiva salva de palmas e urros da plateia, a banda, que já havia se retirado, voltou ao palco para mais uma música. Como um brasileiro sedento por grandes eventos de qualidade, eu esperava muito mais músicas. Como uma pessoa sensata, entretanto, que imagina a lotada agenda e longas viagens da banda, e também pelo simples fato de que a banda já havia se apresentado no dia anterior, eu me dou por satisfeito e, muito mais que isso, privilegiado e agradecido.

Thank you for the great performance, Hiromi! Come back anytime you want. We’ll be here with our emotion, and we know you’ll bring yours too!

Três álbuns de jazz

Mais um post aqui no Música Sem Foco. Desta vez vou falar um pouco dos álbuns de jazz que tenho ouvido nestas últimas semanas. Fiquem à vontade para dar sua opinião!

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Tomasz Stańko – Music for K (1970)

Angustiante. Explosivo. Comovente. Lançado em 1970 “Music for K” é a dedicação de Tomasz Stańko a Krzysztof Komeda, falecido em 1969. Ambos os nomes são provenientes do jazz europeu, e especificamente o jazz polonês em uma estética propriamente nacional em relação à estetica do jazz norte americano.Um estudo amplo seria possível, em que examinaríamos a emergência desse estilo particularmente polonês de jazz, seus grandes idealizadores e popularizadores. No entanto nao tenho conhecimento suficiente e tampouco pretensões grandiosas. O que quero aqui é compartilhar com os amantes da música aquilo que tenho ouvido e admirado.

Krzysztof Komeda era pianista de jazz, band leader e compositor de trilha sonora para filmes. Foi o autor da trilha sonora de Rosemary’s Baby, dentre outros filmes. Tomasz Stańko é um dos mais famosos trompetistas da polônia, que tocou com Komeda em seu aclamado Astigmatic, de 1966. Inicialmente como um membro de banda, e futuramente como band-leader, Stánko tem lançado desde a década de 70 excelentes álbuns. Do trompetista também ouvi Dark Eyes, de 2009.

Em Music for K stánko e sua banda tocam post-bop, aquele jazz que se fixa exatamente no ponto entre o bebop e o free jazz. Não contitui um álbum-exemplo de bebop por ter notas mais longas, e andamentos variados entre explosões de pessimismo ao desespero rastejante. É um álbum em que as músicas se desenvolvem em diversos andamentos, sendo a aflição um sentimento constante durante o álbum todo. Também não é um álbum estritamente de free jazz porque as músicas têm temas e motivos que são apresentados no início, para então se desintegrar em um caldeirão de instrumentos raivosos e potentes. Em uníssono, e ao mesmo tempo em caos, os instrumentos gritam em catarse expelem desespero. Então o tema é retomado e a banda devolve o ouvinte exatamente aonde ele estava quando a peça começou. Mesmo as sessões em que os instrumentistas livremente improvisam e solam todos ao mesmo tempo guardam para si um senso de conjunto em que a angústia dá a liga. Os temas, tanto da primeira música – The Ambusher – quanto a faixa-título de 16 minutos, são memoráveis.

Como um comentário à parte, Astigmatic de Komeda também tem esse conteúdo de aflição e angústia; Dark Eyes de Stánko é bastante nublado e rastejante. Talvez a estética do jazz polonês inclua esta atmosfera de sofrimento. A peça de música clássica The Awakening of Jakob, usada no filme The Shinning de Stanley Kubrick, com sua seção de metais que a cada pulso parecem soprar terror nos cantos mais inabitados do ser,  e com cordas de violino e violoncelo que parecem raspar  a alma, é absolutamente horripilante e angustiante.

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Bobby Hutcherson – Dialogue (1965)

Acima, jazz europeu. Post-bop polonês. Aqui, jazz estadunidense. Post-bop do percussionista (vibrafone e marimba) Bobby Hutcherson. O conceito do álbum é o diálogo, em que ideias contribuem a partir de diferentes pontos de vista para formar uma integridade cujo poder total é muito maior do que a simples soma das forças individuais. Apesar de o álbum ser creditado a Bobby Hutcherson, muitas vezes o pianista Andrew Hill, compositor de 4 das 6 faixas do álbum e ávido cheirador de cocaína, é quem lidera. O estilo do pianista, famoso também pelo frenético álbum de bebop Black Fire, é imprevisível e independente. Quando ele lidera, é como se apresentasse um ponto de partida aos membros do grupo e ao mesmo tempo constituisse a vanguarda da peça. Ainda assim, por ser um diálogo, o álbum é absolutamente consensual, os músicos alternam-se entre os papeis de condutor da música e muitas vezes, como na faixa Idle While, percebe-se instrumentistas intensamente focados em sua própria seção, improvisando livremente, mas ao mesmo tempo em sintonia com o andamento e humor da composição. O álbum varia entre trechos mais mais rígidos, com temas fortíssimos, como o da abertura Catta, a seções mais livres e esparsas, com improvisos coletivos e simultâneos, como na faixa título. Algumas seções são mais melódicas, como Idle While a que Sam Rivers traz doçura com a flauta, e a sensual Ghetto Lights, já outras, como Les Noirs Merchants, e a própria Dialogue, são sombrias e intensas. Em alguns trechos me parece claro que o integrantes não estavam buscando necessariamente a beleza, ou não tinham a atenção de que o que compunham fosse agradável, mas sim queriam se envolver com o interplay e deixar a música fluir da forma que o arranjo, e a própria banda, assim desejassem. A última faixa não estava inclusa no LP lançado em 1965. Seu título, Jasper, é uma alusão perfeita ao êxtase e a vertigem do bebop.

O álbum foi lançado pela Blue Note, uma gravadora especializada em jazz avant-garde, que a partir de 1939 produziu e lançou renomados álbuns, como Blue Train de John Coltrane, Workout de Hank Mobley, o próprio Point of Departure de Andrew Hill e muitos outros. A gravadora conseguiu estipular um padrão de qualidade e estilo, bem como o desenvolvimento de técnicas específicas na cena do jazz avant-garde, e influenciou a história do jazz como um todo.

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Joe McDuphrey – Experience EP (2002)

Primeiro e único álbum solo de Joe McDuphrey, mais conhecido como o tecladista do Yesterdays New Quintet. O EP conta com a participação de Otis Jackson Jr na bateria,também do Yesterdays New Quintet, e Russel Jenkins no baixo. Quem produz e mixa o álbum é Madlib, com dave Cooley na masterização. Com exceção dos dois últimos nomes, todos os outros já citados aqui são fictícios.

Madlib by Chris Woodcock

Este é o universo de Madlib, “DJ, produtor e MC”, nesta ordem particular de importância, segundo o próprio Madib. É o homem a quem a lendária gravadora de jazz Blue Note entregou seu acervo para ser trabalhado, resultando no excelente Shades of Blue – Madlib Invades Blue Note. Está por trás também de colaborações como Champion Sound, em que se reveza com Jay Dee from Slum Vill: enquanto um rima, o outro produz a batida, e vice-versa. Madlib é também quem cede os enfumaçados e fat beats do álbum Madvillainy à disposição das rimas de MF DOOM. Madlib ainda tem tempo para produzir e lançar os álbuns do vilão Quasimoto, frequentador de strip clubs, também conhecido por fumar maconha atrás da igreja com o padre, e por na hora do aperto sempre conseguir se safar da polícia por não
apresentar “nenhuma evidência“.

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Como se fossem poucos – os projetos e os heterônimos – Madlib ainda consegue criar, desenvolver e alimentar o “Yesterdays’ Universe”: o Yesterdays New Quintet, assim como todos os seus integrantes, com diversos projetos solos, são fruto da fértil mente de Madlib.

Em Experience EP, Madlib, agora devidamente apresentado e desmascarado, incorpora todos os integrantes da banda, produzindo os arranjos, e desenvolvendo cada camada das músicas – o baixo, os solos de Fender Rhodes e sintetizador, e a bateria. Os métodos de composição de Madlib são um tanto obscuros. Pelas informações que tenho, e pela dedução que faço ao ouvir as músicas (podendo estar errado, portanto) tenho a impressão de que Madlib grava a si mesmo tocando bateria. Com o as gravações em mãos ele então, como o exímio DJ e beat maker que é, faz loops. Possivelmente Madlib também pode fazer o mesmo com o baixo: tocar e se auto-samplear ou talvez simplesmente criar as linhas de baixo eletronicamente. O mais fantástico para mim é como, neste caso em que seus beats compõem músicas com tema, desenvolvimento, refrão, a programação de bateria é absolutamente viva, com viradas e outras mudanças de intensidade e ritmo. Como o EP é do tecladista do YnQ, ouvimos no EP uma série de experiências como timbres, texturas e cores nas melodias que Madlib improvisa nos teclados.

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Ainda especulando, Madlib também pode simplesmente samplear bateristas para fazer a seção rítmica do EP. Como exemplo temos as gravações de Madlib com o percussionista brasileiro Ivan Conti. Mas, no final das contas, é muito mais provável que Madlib misture em sua expertise samples de outros artistas, de artistas que trabalham com ele e também dele mesmo.

Experience EP é um curto álbum de jazz. Bastante leve, com uma seção rítmica muitíssimo inovadora e curiosa, e também com várias camadas de teclados relaxantes, confortáveis e com atmosfera urbana. Destaque para Song For Airto, com sua bela melodia e solo de piano de Joe McDuphrey.

Aqui não se deve esperar virtuosismo nos teclados, mesmo que seja o trabalho solo do tecladista Joe McDuphrei. Madlib demonstra virtuose como um beat maker, um produtor que funde hip-hop e jazz de forma absolutamente única, e que neste álbum particularmente está interessado em experimentar mais livremente as possibilidades do teclado em sua música.

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